terça-feira, 16 de setembro de 2025

A ministra

Imagem gerada por IA

 

Inteligência artificial. Eis um tema no qual a minha opinião – valha-me, pelo menos, a santa consistência – nunca mudou. Parece-me uma péssima ideia, baseada no otimismo tosco de quem dormiu nas aulas de História. Acho que o risco que traz é maior do que os benefícios... ainda que os benefícios – já o sabemos de cor – possam ser todos muito válidos e relevantes.

 

Atrás das invenções e avanços, entendam, está a figura imperfeita do homem. Esse ser incorrigível que já subverteu demasiados “milagres” para os transformar em novos níveis de inferno. Lembremos que a energia nuclear visava a energia limpa e não a militarização. O mesmo dizemos dos drones, do GPS, dos fertilizantes químicos, ou da tecnologia espacial, hoje tão profícua no lançamento de mísseis balísticos intercontinentais... Isto, claro, para não falar na esperança médica na engenharia genética, na biotecnologia, na impressão 3D... tantos exemplos que enumerá-los daria, por si, um artigo vasto.

 

O ser humano tem a capacidade e o dom de perverter tudo o que podia representar progresso, de o transformar numa arma capaz de destronar até as poucas alegrias que ainda sobram. O homem atrás da máquina não é feito da esperança que a criou. O homem é, por vezes, naturalmente inteligente, a ponto de esconder o quão artificial é nos seus intentos.

 

Tenho observado os efeitos dantescos da normalização do uso da inteligência artificial. Talvez um pouco mais por senti-los na pele. De um momento para o outro – que devagarinho não foi! – reduziu o fluxo de trabalho e o quanto os clientes se dispõem a pagar por ele. Acusações do uso indevido das novas tecnologias surgem do nada. Desconfiança de responsáveis e clientes aumenta. Fala-se de que a inteligência artificial é, agora, artista. Escreve, compõe, pinta... Escapa a quem o diz que a arte é processo e não produto. Quanto se perderá – pergunto – se a arte perder a alma? Se o artista deixar de existir para colocar nela o pó dourado das suas lágrimas e dos seus esforços e do seu olhar sobre o mundo?

 

A minha opinião nunca mudou. Acho que, num mundo cada vez menos humano, caminhamos – irreversivelmente – para a nossa própria destruição. A minha opinião nunca mudou. Mas, há cerca de uma semana, tremeu... Tremeu por isto: A Albânia nomeou recentemente Diella, uma ministra gerada por inteligência artificial. Esta falsa ministra – não confundir com as ministras falsas – faz parte do novo executivo nacional albanês e pretende-se, com a sua integração, garantir que os contratos públicos estão livres de corrupção. Ora. Primeira reação. Pensei que era fake news, essa outra praga do nosso quotidiano, através da qual, de repente, imaginamos o Presidente da República a provar um cheeseburger numa visita oficial ao estrangeiro ou temos imigrantes a receber subsídios milionários... Depois, encontrando a mesma informação em incontáveis sites noticiosos de alegado prestígio e seriedade – foco no alegado – resignei-me com a veracidade da notícia. E sorri...

 

Depois de sei lá quantas notícias de estudantes que usaram esta tecnologia para não aprender nada. Depois de sei lá quantos artistas a queixarem-se de como se sentem roubados na sua arte. Depois de sei lá quantos dias a desesperar porque o trabalho não chega e nos estamos a descobrir substituíveis... Finalmente uma área de integração da inteligência artificial que pode oferecer alguma utilidade efetiva ao mundo. Na política, qualquer forma de inteligência é bem-vinda. Na política, julgo... pior do que está, não fica.


Marina Ferraz




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terça-feira, 9 de setembro de 2025

Apostasia


Imagem do Pixabay


Há 36 anos alguém me regou. A água que me regava dizia-me para crescer em Deus. Nesse dia, sem que dissesse palavra, afirmaram com convicção que eu seria sua filha, que estaria nas suas mãos. Mais tarde descobriria que Deus me fez. Que Deus tudo podia. Que Deus está em toda a parte e tudo sabe.

 

As afirmações sem espaço de discussão calaram – quantas vezes à pressa – as perguntas que eu tinha. Que mãos moldaram e cozeram o meu barro? E, se foram as de Deus, porque era eu um ser imperfeito e diferente, andando pelos corredores da vida com medo da próxima agressão? Se Deus tudo sabe, para quê as confissões? Se Deus está em toda a parte e tudo pode... porque não trava o sofrimento, a guerra, a fome...?

 

A Igreja – e nunca Deus – estendeu mil vezes as mãos pedintes aos pobres, exibindo o ouro das suas ostentações enquanto sorvia o seu pouco. A Igreja – e nunca Deus – ofereceu-me a sentença, dizendo que, faça o que fizer, sou pecadora... Talvez, olhando agora, tenham sido mais honestos do que aqueles que me maltratavam sem que eu soubesse porquê. Engoli a primeira hóstia depois de engolir muitas homilias. Mas não foi nas palavras de párocos e beatos que encontrei fé... encontrei-a nas ruas, nas florestas, nos livros. No mar, que falava comigo. Na voz da minha avó – reflexo de bondade – mas ainda assim condenada, como eu, ao rótulo pecador.

 

Com passinhos pequeninos, fui apresentando as perguntas. Com rugidos gigantes, foram tentando calar-me. E a alma, que sabia onde tinha a sua fé, foi-me levando aos bocadinhos até aos santuários feitos de pinheiros vivos, de rios, de correntes, de brisa, de sol e lua. Pagã nos olhos de Deus e dos Deuses, deixei assim a pecadora que fui na infância e rumei a destinos sem pecado.


Numa tarde de verão – deste verão, que agora dá um último respiro – sentei-me durante uma hora na paróquia onde, faz hoje precisamente 36 anos, me regaram. Entreguei a carta que me divorcia da decisão dos outros. Agradeci os ensinamentos bonitos – também os houve – que ficaram entre os rótulos e as penitências. Falei sobre a diferença entre a religião e a fé de forma clara e indiscutível. Falei dos crimes cometidos pelos homens em nome de Deus e do desacordo face à expiação. Das passagens bíblicas que condenam o incondenável. Dos perigos de se dar a outra face... mais agora, num mundo que não cansa de atacar. Nem por uma vez tentaram desafiar a minha decisão. Entrei pecadora sem crer no pecado e católica sem crer em Deus. Saí pagã, como já era, crendo na Natureza. Saí apóstata e infiel nos olhos de alguém.

 

Atravessando a igreja, à saída – a mesma em que entrei para que me regassem – vi Cristo, seminu e crucificado, como sempre. Desejei-lhe uma Natureza viva, lá por onde andar, agradeci novamente, porque a sua filosofia de bondade tem valor. Depois, disse baixinho: Perdoai-lhes, que sabem exatamente o que fazem.

 

Lá fora, o sol brilhava. O dia estava quente. Tinham-me regado. E eu cresci. As minhas raízes estão firmes no solo. Sou filha de Mãe e Pai, de Avó e Avô, do Sol e da Lua, da Água e do Fogo, da Terra e do Ar. Há um mundo inteiro à espera de ser melhor. E eu tenho fé...

Marina Ferraz



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terça-feira, 2 de setembro de 2025

Mau tempo

 


Hoje está mau tempo. Foi assim que ela começou a conversa. É assim que se começam as conversas quando não há assunto. É assim que se faz um alinhavo no silêncio, com um fio muito lasso de préstimo, para que não pareça que o espaço entre nós e o outro é um rasgão. E eu, que podia ter cordialmente seguido os ensinamentos arcaicos do politicamente correto. Eu, que podia ter olhado pela janela para me resignar com as nuvens densas que povoavam o céu. Eu, que podia ter-me limitado a dizer algo breve e concordante – de facto, está – ou até acrescentado algo que permitisse o decurso da conversa – penso que acabou o Verão... – olhei-a, em vez disso, com os olhos muito cansados, sem me importar com a meteorologia. E disse: já não é de agora.

 

Está tempo de guerra. Está tempo de preconceito. Está tempo de se temer a rua. Está tempo de se temer o futuro. Está tempo de se temer. Metade do nevoeiro é smog. A escuridão do céu tem fumos e desesperos. A chuva é lágrima. Cai e não rega senão as desilusões. Apontam as temperaturas no mapa do país, para que possamos prever os desabamentos de terra e as outras desgraças que virão de arrasto no rescaldo do incêndio que o dinheiro ateou. Está tempo de dar mais a quem tem demais. Está tempo de tirar a quem não tem para que esses tenham. Está tempo de olhar o abismo com desejo. Está tempo de saltar sem dúvidas. Está tempo de embater no solo para constatar que doía mais antes do salto. Está tempo de quebrarmos os ossos e de dilacerarmos a carne, antes que alguém o faça por nós. Está tempo de se roerem as gentes até ao tutano da sua sanidade. Está tempo de condenar a arte que pinta com sangue as verdades do tempo. Não me importa muito se é o tempo da toalha estendida na areia ou o tempo da gabardine. Está mau tempo. E já não me lembro da última vez em que o tempo estava bom.

 

Claramente, a senhora que não gostava de nuvens também não gostou da resposta. Talvez por descobrir que trago uma nuvem sobre a cabeça, de onde chovem ocasionais verdades. Talvez porque tenha conseguido escudar-se da ruindade dos tempos até hoje.

 

Uma nuvem afasta-se para que um raio de sol rasgue o manto cinzento e alumie a rua. Talvez o tempo melhore. Ouço-a dizer a alguém. Ainda bem que não mo disse a mim. Honestamente -  teria eu respondido – duvido!


Marina Ferraz



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terça-feira, 26 de agosto de 2025

A escola

 

Imagem retirada do Pixabay

Quando eu andava no colégio, aprendemos a relacionar a Irmã Bom Pastor mais com os doces do que com as hóstias. A simpática freira vestia sempre um sorriso juntamente com o hábito e ganhava a simpatia de todos com facilidade, falando mais da Terra do que do Céu, e mais da culinária do que de Deus. Ninguém duvida que acreditasse num senhor-com-maiúscula, nem que orasse ou se confessasse regularmente. Mas, talvez por ser criança, lembro-me mais dela na cozinha do que na capela. Tinha mão de anjo para a gastronomia. Operava milagres diversos, incluindo o da multiplicação de crianças na fila do recreio para os bolinhos ainda mornos, sendo o bolo de chocolate um dos favoritos, vendido na salinha debaixo das escadas, junto à copa.

Chegada a nossa vez e oferecidos alguns escudos, escutávamos a pergunta com ou sem açúcar. E não, não era sobre a confeção do bolinho de chocolate que se falava – que tinha açúcar era certo - mas sobre o açúcar branco refinado que, a gosto, punham ou não sobre o mesmo.

 

Hoje, seria impensável dar a uma criança – ou até vender numa escola – os bolos da Irmã Bom Pastor. Para começar porque trouxe do colégio um texto mais importante do que qualquer evangelho – a receita do bolo – e sei bem a quantidade de açúcar que leva, a medida do óleo e como pode ofender todos os que não podem e não querem consumir glúten. E, depois, porque a lei, entretanto, fez questão de aplicar normas muito estritas sobre os produtos que podem ser vendidos, e duvido que as delícias caseiras de uma simpática idosa seguissem todos os padrões exigidos pela brigada do saudável.

 

Hoje fiz esse bolo. Partilhei-o com quem, como eu, ignora as normas e restrições que o mundo tem vindo a impor de forma exponencial e hostil. Ainda há pouco, apeteceu-me uma fatia, que aqueci e cobri de açúcar, buscando na memória o sorriso doce da senhora de hábito que, por hábito, frequentava a copa. O chocolate misturou-se com o açúcar e colou-me perguntas aos dentes. Perguntas sobre a razão que nos leva a negar deliciosos prazeres às crianças, para evitar que sofram de diabetes, mas continuamos a dar-lhes um mundo que lhes confere stress, ansiedade, depressão, burnout, distúrbios do sono, distúrbios alimentares, dependência digital e, em muitos casos, vontade de não estar vivo... Parece que, de súbito, se serve apenas uma saudável falta de futuro nas escolas.

 

Devia ir lavar os dentes. O açúcar faz cáries e as perguntas fazem azia. Não entendo nada disto. Mas, mais uma vez, quando eu andava no colégio também se ensinava a desenhar e não a desdenhar... e... olhemos o mundo!


Marina Ferraz




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terça-feira, 19 de agosto de 2025

Dilúvio

 

Imagem gerada por IA

Os meus olhos choveram. Abri a barragem que travava as nuvens da alma. Então, os meus olhos choveram. Choveram como chove a chuva quando cai, sem se importar com quem vê, embora eu me importasse. O meu rosto ganhou fios negros, maquilhagem escorrendo em finas cascatas negras de tristeza. E, fazendo o gesto de quem pretendia limpá-las, a voz disse: é a maneira como anda o mundo, não é?

 

Incêndios que consomem florestas. Pessoas bombardeadas por mísseis e fome. Direitos que se perdem. Gente que vive sem teto. Gente que tem os filhos arrancados dos braços. Doenças que comem até o osso da esperança. Palavras de ódio gravadas nas paredes. Ameaças. Almas baleadas sem razão aparente. Lares que amolam vidas até que sucumbam. Preconceito que se estende e espalha. Alheamento e desistência. Mares que deixam pessoas doentes. Negociações nas mãos manipuladoras dos fidalgos. Mais uma mulher assediada, violada, morta na esquina da vida. O enterro da arte e da cultura às cinco da tarde, com missa de corpo presente à meia-noite no santuário da desventura.

 

Fazendo o gesto de quem pretendia limpar as lágrimas, a voz disse: é a maneira como anda o mundo, não é? Mas tudo isto me correu a mente. E eu afastei o rosto porque não o quero limpo. Porque estou farta da maquilhagem. Porque estou falta da secura da abstração e do teatro diário, com paredes aplaudindo o hercúleo sorriso. A pergunta. Tão honesta, tão sensível. A pergunta. Tão compreensiva e abnegada. A pergunta. Humilhando-me. Como gostaria que fosse o mundo, que não fosse egoísta, que não fosse pena de mim...

 

Incêndios que me consomem. Eu, bombardeada por ideias que não são míssil nem fome. Eu, e os direitos que vou perdendo. Eu e o teto com as suas rachas. Eu, com o futuro arrancado dos braços. Eu e o osso da esperança roído. Eu, e as palavras de ódio que gravo nas minhas próprias paredes interiores. Ameaças. Alma baleada sem razão aparente. Vida amolada até sucumbir. Preconceito, alheamento e desistência. Mares que, distantes, que me adoecem. Negociações nas mãos manipuladoras dos outros. Ser mulher sem esquina em que me matem. Ver o enterro da arte e da cultura às cinco da tarde, com missa de corpo presente à meia-noite no santuário da desventura.

 

Percebo que vejo o mundo do meu centro. Que sou o centro do mundo. Que sou o mundo. A árvore arde e eu ardo com ela. O bombeiro morre e eu morro com ele. A pobreza alastra e eu alastro nesse rio de mágoas. E sou tão egoísta que me choro – a mim – em cada coisa.

 

Por favor, acusem-me deste egotismo! Perguntem-me: é a maneira como anda o mundo, não é? Permitam que eu saiba que sou só mais um bicho saído da caixa de Pandora. Mas, peço-vos. Por tudo o que seja sagrado para vós... não tentem limpar-me o rosto. Não ousem limpar-me as lágrimas.

 

Levem a mão à vossa própria face. Ainda está seca? Porquê?


Marina Ferraz




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terça-feira, 12 de agosto de 2025

Rebobinando

 

Imagem gerada por IA


"E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará."
— João 8:32

 

 

A verdade que liberta é a mesma que prende. É isto que deveriam dizer-nos, antes de nos ensinarem a dizer verdades como se elas fossem inócuas. Não são. A verdade fere. A verdade repele. Em alguns casos, a verdade assusta, a verdade agride, a verdade mata.

 

Escreve-vos, portanto, um morto. Não é um morto diferente da bruxa que ardeu na fogueira. Não é um morto diferente daquele que perdeu a cabeça no cepo da não negação. É um morto que morreu, tendo por carrasco a palavra que podia ter sido calada ou pintada de tonalidades brandas. Este morto respira. Apenas isso o separa das cinzas e da cabeça decepada. A sua sepultura é apartamento. Sua. Está calor neste inferno. Desculpem.

 

Despida até de batismo, me vou alongando pela memória da verdade que me talhou os dias e me faz gente. Tudo em mim é demais. Dizer-me aos outros é rasgar-lhes intento. Calar-me pelos outros é negar-me. Fico no espaço confinado entre o que quero dizer e não devo, o que posso dizer e não digo, o que ouvem e eu não disse. O resultado é sempre o mesmo eco. O eco do silêncio. Embatendo nas paredes e voltando, perfurando-me como bala.

 

A verdade é que todos os dias há gente que nasce. Todos os dias há gente que ri. Todos os dias há gente que faz plano de ser feliz para sempre. E todos os dias há gente que morre. Todos os dias há gente que chora. Todos os dias há gente que vê malogrado o plano de ser feliz para sempre. É a fome. É a guerra. É o desamor. É a filha da puta da mentira a passar a perna a todas as alegadas verdades.

 

Vou dizendo a mim mesma que o mundo me está a deixar louca. Que o mundo louco me está a deixar louca. Que o louco mundo louco me está a deixar louca. Que o louco mundo louco me está a deixar loucamente louca. A verdade vos libertará. João era louco como o mundo louco. João era louco como eu.

 

Aqui estou, acorrentada à verdade que libertei. E ela é livre. E eu estou encarcerada entre paredes. De cimento. De silêncio. De realismo duro. Talvez lhe pendure um quadro cheio de sorrisos. Sorrisos feitos para o disparo da máquina. Porque é que sorrimos sempre que alguém dispara?

 

Vou rebobinar. Fazer um filme mudo. O mundo é louco. A verdade assusta, a verdade agride, a verdade mata. Vou rebobinar. Amanhã estaremos todos vivos.


Marina Ferraz




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terça-feira, 5 de agosto de 2025

Dá-me crédito

 

Imagem gerada por IA


A senhora, por acaso, não tem um minuto que me dispense para lhe dizer como podemos ajudá-la a lixar um bocadinho mais a sua vida? Tenho a certeza (quase) absoluta de que não foi isto que o homem sorridente e elegantemente vestido que se dirigiu a mim disse. Mas foi como se o dissesse. Foi como se o ouvisse. E, mesmo que ele não o tenha dito e eu não o tenha ouvido, era exatamente isto que estava contido nas entrelinhas do que ficou por dizer.

 

Ele quer atirar-me números à cara. Sabe que se começar o discurso de forma personalizada. O que faz, se não me for indiscrição? Uma palavra puxando a outra, se assim fosse permitido. Chegaríamos à pergunta – hoje afirmação – sobre se não me faziam jeito mais uns milhares de euros imediatos. Quem – por favor digam-me – é que não sente falta de ter mais um zero ou dois na conta bancária, neste país onde os salários são baixos e tudo – impostos, rendas, compras – é caro? O engodo estaria lançado. Logo ali. É com alguma aversão e preconceito que olho para ele e respondo um não muito seco logo que me diz boa tarde. Tento perdoar-me pelo asco imenso que sinto por aquele ser humano, recordando-me de que não é ele, mas a marca por detrás dele, que me enoja. Talvez tenha filhos para criar e não tenha arranjado outro emprego. Digo isto a mim própria, sentindo-me envergonhada comigo mesma por ser tão imediatamente repelida pela ideia de lhe responder, como faria com qualquer outra pessoa, um boa tarde simpático. Mas a moralista em mim vem à tona, sou o azeite desta água, e não sei se haveria alguma circunstância que me fizesse aceitar aquele emprego...

 

Crédito é uma palavra que me arrepia. Arrepia-me porque, em 2023, o mundo atingiu uma dívida recorde de 300 triliões de dólares. Arrepia-me porque existe mais dívida do que dinheiro no mundo. Arrepia-me porque o sobreendividamento gera problemas sérios de saúde mental e é uma das causas frequentes de suicídio. Arrepia-me porque é um jogo em cadeia: fazer dívida, fazer crédito para saldar dívida, ter dívida, fazer crédito... São centenas de milhões de pessoas nesta situação. Pessoas frágeis, que procuram solução em qualquer canto... até nas vozes simpáticas dos senhores que as abordam em centros comerciais. Suspiro. Sinto-me feia por responder mal ao funcionário que, provavelmente, receberá apenas comissões mal pagas pelos seus serviços. Ele nada mais é do que o carrasco pobre, erguendo e baixando o machado nos pescoços dos outros pobres. Mas irrito-me porque a abordagem é invasiva, é insistente, é agressiva.

 

Entre 1971 e 2010 basicamente todos os países proibiram a publicidade ao tabaco, quer nos meios de comunicação como em espaços públicos. A saúde pública, o custo social e económico e a proteção dos jovens foram razão suficiente para que as legislações restritivas entrassem em vigor, ainda que sobrasse espaço para alguns geniais momentos de marketing, como o da Camel, que lançaria o seu mítico outdoor Não fume! Nem mesmo Camel. Como é que, em 2025, os países apenas regulam a publicidade ao crédito, exigindo as famosas letrinhas pequenas do TAEG e afins, mas continuando a permitir que se coloquem bancazinhas de persuasão no caminho das pessoas? E sim, já me disseram que não é a mesma coisa, que o tabaco mata. Vamos, então, a números: mundialmente cerca de 13% dos endividados tenta suicidar-se, 12% assumem pensar nisso e 21% dos endividados em situação grave morrem por suicídio.

 

O crédito servido nos corredores dos shoppings é o chocolate cuidadosamente colocado nas linhas de caixas dos supermercados, para aliciar as crianças. Não sou contra o chocolate. Quem tem vontade ou necessidade de chocolate pode dirigir-se ao corredor dos doces para o ir buscar. Quem precisa do crédito não deixará de procurá-lo. Mas é horrível estar a vender uma religiosa salvação onde apenas existe um novo problema.

 

Continuo a andar, deixando para trás o homem a falar sozinho. Levo comigo um peso extra. Gostaria de saber explicar melhor. Vou-me perguntando. Como é que, no meio de tanta proibição estúpida, a publicidade ao crédito ainda é permitida?

 

Uma resposta incomodativa surge na minha mente. Talvez seja conveniente para alguns. Talvez, para o sistema, um pobre morto valha mais.


Marina Ferraz




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terça-feira, 29 de julho de 2025

Jogos equilibrados

 


Quando tens uma mente agitada, todos os momentos são de análise. Não importa se está calor. Se estás na praia. Se a companhia é boa e levaste um livro. Não há nada que te distraia do mundo, da injustiça, da triste realidade que se abate diariamente sobre ti. Não é só o cartaz sorridente da menina que se candidatou à câmara do teu município, provavelmente para o limpar dos ratos ou para incentivar crianças violadas a manterem a gestação. É tudo. A conversa da pessoa que passa a defender o genocídio com o “não foi Israel que começou”. A rapariga a ler na toalha em permanente estado de alerta e que se encolhe um bocadinho sempre que passa um homem a falar mais alto. O jogo de... vólei?!... que acontece à tua frente e que te lembra a realidade da mulher na sociedade de hoje.

 

Atentai, senhoras e senhores, penso com ironia, ao jogo mais equilibrado de todos os tempos! De um lado temos quatro homens, físico relativamente treinado e experiência de jogo. Do outro, sete raparigas, todas pequenas e jovens – a maioria não terá mais de um metro e quarenta e a mais velha (a única mais velha) não terá mais de treze ou catorze anos, enquanto a mais nova não terá mais de seis ou sete. Jogo equilibrado, julgam eles! Estou absolutamente certa, porque os ouvi, à chegada, dizerem: vocês fazem uma equipa. Para equilibrar forças, certo? Condescendentemente, até permitem que elas, não sendo um jogo formal, possam dar mais de três toques na bola, enquanto eles – coitados! – têm de se ater às regras.

 

O jogo começa. Eles passam a bola com facilidade uns aos outros e por cima da rede. Elas atrapalham-se na confusão de ter gente demais em campo e algumas – normalmente as mais baixinhas – nem chegam a tocar na bola. Ocasionalmente, quando uma atravessa o campo e embate no campo deles, entreolham-se e permitem que elas marquem um ponto.

 

Claro! Todos se riem. Estão bem-dispostos e divertidos. Elas também. Tento pensar, dentro dos meus calções de ganga e t-shirt oversize preta - nada contra o bikini que tenho por baixo, mas as nortadas portuguesas transformam frequentemente a praia numa experiência de crioconservação! – que estou a ser demasiado crítica.

 

Penso-o assim: Eles estão a divertir-se, por que raio é que isto me incomoda tanto? Estou a ser demasiado crítica. E estou. Raios! Não faz de mim nada boa pessoa, pois não? Irrito-me comigo própria. Mas, depois, penso melhor. Não é o jogo que me irrita, mas a metáfora. Irrita-me que se equilibre o jogo da vida quotidiana com estratégias que não dão qualquer vantagem à mulher, servindo apenas para dar argumentos aos homens. Como assim, estás em desvantagem? Vocês eram mais e até vos permiti regras mais suaves? A falta de espaço para agir, a falta de altura para competir, a falta de força e de experiência... nada disso é olhado. As falsas vantagens cobrem a desvantagem óbvia com uma capa de condescendência. Como a mulher que tem sorte em ficar em casa com os filhos porque o pobre do marido trabalha. E o sonho dela que se lixe. Como a mulher que trabalha na empresa X e até chega ao cargo que ambicionava. E as horas extra, o esforço extra, invisível. Como a mulher que caminha na rua, vestindo o que lhe apetece. E os riscos que corre, que se ignorem.

 

Uma vez perguntaram-me se o feminismo ainda era necessário. E eu respondi: cada vez mais. Ainda não sabia que o mundo iria para onde, atualmente, está a ir, e já o dizia. Hoje, não ser feminista, é ser conivente com um sistema no qual a mulher é aniquilada por estratégias diretas e indiretas. Diria uma grande amiga: é um mundo de homens que odeiam as mulheres. Eu acrescento, porque nasci com jeito para a advocacia de belzebu... com exceções, felizmente!

 

Seja como for, e sem querer estragar a diversão destas onze pessoas que jogavam algo que pretendia ser vólei na praia, fico à espera de jogos mais equilibrados. Mas eles não se equilibram sozinhos. Eu sei que gasto esta palavra... mas sinto a areia a correr vertiginosamente na ampulheta da vida, e sou fã de repetições. Lutemos, gente! Lutemos!


Marina Ferraz




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terça-feira, 22 de julho de 2025

Mal entendido

 

Imagem gerada por IA

Creio que tenho sido profundamente injusta com a classe política portuguesa. Talvez lhes deva um pedido de desculpas. Talvez devesse dar as costas à chibatada e, por minha própria iniciativa, permitir ou até incentivar que continuem - agora com maior facilidade de sua parte e voluntarismo de minha – esse árduo trabalho de me reduzir o corpo a carne moída para lhes alimentar as anafadas contas bancárias. Sim! Eu tenho sido injusta. Cruel. Dona de um esquerdismo incompreensível. Woke. No mínimo, talvez devesse reunir os textos antigos em frente ao parlamento, atar-me à estaca central e pedir que lhes ateiem o lume.

 

Eu realmente interpretei mal o texto. A intenção. Com olhos cheios de mães a terem e perderem filhos em ambulâncias, pessoas a verem casas (podemos chamar casas a barracas?) demolidas, gentes trabalhadoras sem dinheiro para rendas, que se reúnem nas ruas para viver a vida frugal da miséria, imigrantes atirados para fora das fronteiras outrora hospitaleiras. Com olhos cheios de mulheres a serem violadas e mortas, de uma desatenção crítica às crianças que morrem à fome além-fronteiras, de florestas queimadas por interesses económicos, de empregos roubados pela inteligência artificial, de impostos sufocantes que dão aos trabalhadores independentes a vontade de não viver de todo, de ódio assassino nas ruas. Com os olhos cheios de tudo isto e tanto mais do que isso, eu falhei na arte de ver a realidade. Foi um mal entendido! Como queria, agora, redimir-me de todas as críticas que fiz! Como queria, agora, ter a máquina do tempo que me permitisse retirar toda a verborreia que utilizei para atribuir títulos malogrados e toda uma diversidade de impropérios àqueles que, claramente, tentavam apenas manter-se coerentes com as ideias propagadas.

 

No centro das suas intenções – escritas em programa – ditava-se a intenção, desde o começo: erradicar a pobreza.

 

Calhou-me a mim – logo a mim, que tanto estudei e fiz por ganhar alguma cultura – a asnice de não entender que tudo o que foi feito foi neste sentido. O de permitir um país melhor. Menos pobre. Mais convidativo. Deveria ter entendido, antes de discursar contra o sistema. Pobre tola! Tudo era estratégia. Tudo era tática. E poderá estar a correr sobre rodas, rumo ao futuro que se quer. Afinal, qual a melhor forma de erradicar a pobreza, do que erradicar os pobres?

 

Génios! São génios que temos a governar-nos. E realmente talvez salvem Portugal.

 

Pena tenho de quem votou neles, julgando que faria parte desse Portugal que vai ser salvo.

E que agora espera na fila, para arder comigo.

Para que a pobreza seja erradicada.


Marina Ferraz




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terça-feira, 15 de julho de 2025

A palavra difícil

 

Imagem gerada por I.A.

Apodítico, exórdio, prosápia ou ubérrimo. Incentivo-vos a abrir um dicionário a sério. Daqueles clássicos, feitos de uma tecnologia intemporal chamada papel. Incentivo-vos a folhear esse dicionário – por favor, sem o desfolharem! – e a beberem, não tanto o significado de palavras como as que iniciam este texto, mas a variedade de vocábulos similares. Raros. Difíceis na língua e no entendimento. Incentivo-vos a descobrirem, entre as palavras que saem à rua, aquelas que ficam nas bibliotecas, nas prateleiras, sentindo-se inúteis. Devem ser mulheres, porque dizem que são difíceis...

 

Às vezes, eu abro o dicionário para olhar para elas. Peço-lhes desculpa. Apresento-me àquelas que ainda não conheço. Algumas são pedantes e não me respondem, porque o meu nome é simples. Entendo-as. Quem é renegado raramente confia nas vozes brandas, com medo do abandono ou da traição... Outras, ainda assim, atraem-me, cativam-me. Dizem-me para lhes conhecer os sentidos. De todas, no entanto, recebo o mesmo queixume. Aprenderam sobre si próprias que são difíceis. E é então, ao ouvir esse lamuriar, que me sento no trono de azulejo do chão da casa e inicio o monólogo.

 

A palavra mais difícil do dicionário sai à rua. Prostitui-se na boca de toda a gente. Imprime-se em cartazes políticos, grita-se nas altas instituições e nas tabernas. Nas escolas e nos jardins. Nas casas de família, sejam as famílias tradicionais, monoparentais ou queer. Essa palavra é de entoação básica, curta para não atrapalhar a vocalização, rápida para não gastar o precioso tempo de uma geração digital, permanentemente ocupada com merda nenhuma. Vem no dicionário, mas desconfio que ninguém alguma vez a procurou, porque uma criança a usa entre as cinco primeiras que aprende, quando não calha ser logo a primeira, para desanimar mãe, pai, avó e avô, que tanto fizeram para soltar a língua do petiz com a comprovada evidência vocal de que são os grandes favoritos do bebé. A palavra mais difícil do dicionário não é, portanto, difícil de conhecer, difícil de dizer, difícil de identificar. Mas – vá-se entender – todos os dias deseja ser antes uma espécie de apodítico, exórdio, prosápia ou ubérrimo, para que se justifique a falta de entendimento.

 

Por esta hora, estão as palavras todas do dicionário na página aberta, focadas em mim, que sou só uma desinteressante Marina – “local, dentro de um porto, dotado de vários cais e de instalações de apoio, destinado ao estacionamento e abrigo de pequenas e médias embarcações, geralmente barcos de recreio” – tentando descobrir do que estou eu a falar. Mas as palavras são como cerejas, já lá dizia a minha avó. E continuo a verborreia.

 

A palavra mais difícil da língua portuguesa não é longa ou técnica. Não exige um conhecimento lexical profundo, nem qualquer perícia semântica. Não é extravagante, exagerada, fácil de ser confundida com outras, seca ou estranha. Não usa letras estrangeiras. Não tem acentuação incomum. Não.

 

As palavras do dicionário estão agora aos pulos de curiosidade. Sorrio-lhes. Continuo:

 

Exatamente! Como vocês, que ainda não perceberam que vos dei já a resposta. Não. É essa a resposta. Não. E ainda me irão explicar um dia como é que da pessoa mais simples à mais erudita se mantém esta imensa dificuldade de ouvir, dizer, entender e respeitar o “não”.

Porque desconfio que se o “não” fosse fácil, teríamos menos violações, violência e assassinatos. Teríamos mais vozes a dizer “não” ao racismo, à xenofobia, à guerra, à precariedade. Haveria manifestações que levariam a palavra na bandeira. Pessoas exaustas que o diriam aos amigos e amantes nos dias em que, simplesmente, é melhor ficar em casa. Mas não. Não se diz o não. Não se entende o não, mesmo quando alguém o diz.

 

Apodítico, exórdio, prosápia ou ubérrimo, assim como outros irmãos de elevada complexidade podem dormir em paz. São palavras que vivem felizes no anonimato. O “não” é um sem-abrigo. Palavra de rua. Tantas vezes inaudito. Tantas vezes dito e ignorado. Tantas vezes dito e contestado. Tantas vezes violado e maltratado. Tantas vezes sacrificado. Tantas vezes desrespeitado. É uma palavra difícil. Verdadeiramente difícil.

 

É por isso que, quando a uso, se a insistência vem, acrescento: abre um dicionário a sério. Daqueles clássicos, feitos de uma tecnologia intemporal chamada papel. Folheia-o – por favor, sem o desfolhares! – vai até ao “N” e vê se entendes que não é não. Mas efetiva, verdadeira e realmente! Afinal, nem todos somos um partido político, para pôr um “a menos que” no fim de todo e qualquer advérbio!

Marina Ferraz




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